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Livros publicados

 

 

 

 

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ZUARTE  |  2000

Poemas e quadros-poemas 

 

: :  I 

: :  II 

: :  III  

: :  IV  

: :  V 

: :  VI 

: :  VII  

: :  ... mais

 

 

 

XXXVIII

No macio dessas vagas

recomponho meus passos

carmeio meus nós, teço meu zuarte.

E nesse recomeço, me procuro

nos desvãos das espumas,

e do passadiço, solto os fios

do barco em que viajo.

 

Os versos — ao vento.

A alma — ao mergulho

nesse mar que desconheço

peixe púrpuro

      chama de corais

                    sentimentos

                                quimeras.

 

O azul me veste

e eu sem pressa

                 leio estrelas

                 consulto oráculos.

 

Comigo: uma rosa-dos-rumos

um cofre de segredos

e o silêncio fundo

de tudo o que me resta.

 

 

 

 

IV

 

​Olha. Uma tênue luz

Se abisma através da vidraça

Como um anjo etéreo.

 

Sobre a mesa,

duas laranjas

breves e solenes,

vermelhas e serenas.

E esse silêncio — 

denso rememorar

de ácidos e doces

sentimentos secretos.

XIII

 

 

O tempo cardou

com cuidado

meu velo macio da infância.

 

E vim tecendo meu caminho

cruzando meus fios

urdindo tramas

bordando teias

num enredo contido.

Breve sonho — apenas

uma composição de Schumann.

 

No desenlace — aperto o nó.

Não quero tirar a máscara,

gosto do mistério.

XXXV


Ah, se eu soubesse
desse amor que tanto demora
perdido verso — espectro.

Se eu soubesse desse amor
de tantos esboços
e que busco nas entrelinhas
nas linhas das mãos
    num responso
nos fios de um emaranhado de estopa
na fundura de um poço...

Que de leve se esquiva
surgindo do azul
fugaz como uma brisa.
Incorpóreo.
Um sopro.


 

IV


Olha. Uma tênue luz
se abisma através da vidraça
como um anjo etéreo.

Sobre a mesa,
duas laranjas
breves e solenes,
vermelhas e serenas.
E esse silêncio —
denso rememorar
de ácidos e doces
sentimentos secretos.

XI


Avencas e glicínias —
delicado arranjo.
Dormem anjos — perto de mim.

Acordem — acordes, arpejos.
Romântico e lírico — murmurante piano
arde uma sinfonia.
Introspectivamente — Rachmaninov.

Súbito — um silêncio.
Meu coração
segreda.

XX

A equilibrista flutua
em seu cavalo branco,
circo de Seurat.
Pé e dorso,
um acompanha o outro
num passe de mágica.
Ele corpo
ela alma.
Ele terra
ela ar.

Que se danem
palhaços
engolidores de fogo
domadores de feras
malabaristas
globos da morte.

A mim interessa
somente a magia
dos lenços de organza
leveza dos sonhos
sutileza dos versos.

XXII

Muitas bruxas ancestrais
andaram por aqui
e deixaram como vestígio
coisas que se cristalizaram.

Na parede, um prego
com uma paleta de tintas,
um ramo de flores. Secas.
E feixes de vassouras
atrás das portas.

Me agarrei somente a uma.

E saí por aí,
vestido de tafetá
máscara de porcelana,
como se estivesse
num carnaval de Veneza.

XXIV

... e que teus braços
se contorçam em fios de aço
e me envolvam em novelos
de belos enredos.
Me prendam e queimem.
Consumam em chamas
e cinzas
a libélula em que se transformou
meu corpo.

... e depois
ao amanhecer
adube esse canteiro de papoulas
que há muito não me sobe
ao rosto.

XXXV

Ah, se eu soubesse
desse amor que tanto demora
perdido verso — espectro.

Se eu soubesse desse amor
de tantos esboços
e que busco nas entrelinhas
nas linhas das mãos
    num responso
nos fios de um emaranhado de estopa
na fundura de um poço...

Que de leve se esquiva
surgindo do azul
fugaz como uma brisa.
Incorpóreo.
Um sopro.

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FUSO DE PRATA  |  2006
Contos

 

: :  Amavios

: :  Para nunca mais voltar

: :  Satori

: :  Ninguém soube

: :  Os duendes

: :  O domingo de Domingas

: :  Fogos- fátuos

: :  ... mais

Para nunca mais voltar

       Era uma entre muitos andarilhos nesse Brasil Central e como toda pessoa com essa natureza, não conseguia ficar longo tempo em um único lugar. Gostava, às vezes, de perambular em cidades grandes, pois tinha uma certa avidez por novidades, o que não havia nas menores. No entanto, se cansava facilmente e sempre buscava algum refúgio nesses momentos. Um banco escondido numa praça tranqüila, um fundo de quintal onde pudesse ficar sozinha. Se se perguntasse de onde viera ninguém saberia. Mas se lhe perguntassem, ela simplesmente responderia com um murmúrio e um balançar de ombros como quem dissesse — e tem alguma importância isso? Mas para onde iria, se alguém a magoasse, tinha sempre uma resposta pronta — Pra Caturaí. — Uma cidade do interior do estado de Goiás.
       Magra, alta e negra. Soberba. Seu olhar, sempre o mesmo. Incerto, atento e vago ao mesmo tempo, o que lhe dava um certo ar de arrogância. Vestia-se de uma maneira singular: saia longa, feita de saco de aniagem que já perdera a aspereza e que de tão surrada tinha um leve brilho que a tornava mais bonita do que quando nova. Do lado, um bolso embutido, camuflado, para pequenos guardados. A blusa, de algodão fino. O conjunto era arrematado com pequenos bordados e remendos tão harmoniosos e equilibrados de causar inveja a qualquer artista. Nos cabelos, pequenas tranças amarradas com tiras de tecido e presas pela alvura de um pano branco enroscado como turbante com pequenas pontas sobre a testa. Nos pés uma velha sandália gasta. De suas roupas exalava um aroma de patchuli, pois eram guardadas junto a folhas desse ramo, em um saco, também, de aniagem, que ela sempre trazia sobre os ombros, amarrado com um laço, de preferência vermelho. Ali estavam todos os seus pertences.
       Possuía vários amigos. Alguns ela adorava. De outros usufruía da amizade, conseguindo favores, cama, comida e o que precisasse. As pessoas da cidade já estavam acostumadas a vê-la com o corpo agachado em algum lugar, num pequeno canto, bem escolhido, com longos dedos negros a revirar farrapos, pequenos retalhos de seda, papéis de bombons, fitas e carretéis de linhas coloridas, saquinhos de botões diversos e coisas inúteis. Ali ficava horas a fio, escolhendo tecidos, separando cores, inventando riscos, desenhando pontos. Mãos negras de palmas muito brancas com linhas profundas de se esconder o destino, esse, evidenciado nas bonecas de pano que ela gostava tanto de fazer — o corpo, redondo como uma bola, cheio de farrapos, vestido com uma longa saia que escondia em um dos lados um coração bordado com pequeninos nós vermelhos que se esparramavam como se estivesse sangrando. Presa ao corpo, a cabeça. E como eram expressivas e eternamente repetidas! Porém com certas alterações, dependendo do seu estado de humor.
    No desespero de estar sozinha, usava toda sua imaginação e sensibilidade no feitio da companheira fantasmagórica — a boneca — cuidadosamente elaborada. Ao fazê-la, olhava para dentro de si mesma e lhe dava tamanha vida, que após o remate, todos os pontos, remendos, expressão e cores que irradiavam de sua alma, nas horas de solidão e de loucura maior, eram transpostos àquela figura — sinais simbólicos, conseguidos no emendar e alternar daqueles pedaços de trapos, transpostos através dos bordados de flores exóticas com suas correntes e cruzes, ocultando em arabescos, significados profundos e nos coloridos de seus arco-íris, verdadeiras obras de arte. Era incrível a combinação de cores alcançada! Sua visão era livre de todos os grilhões impostos a uma pessoa comum, proveniente de uma vivência além da realidade e desenvolvida pelo seu espírito libertário. Linda, como ela mesma, imperfeita como todo ser humano, era a boneca. As vibrações de seu espírito estavam ali bordadas. Profundas. Vindas do inconsciente e descrevendo através delas a trajetória de seu destino que as linhas das mãos escondiam. A harmonia interna da loucura. Pois, no fundo, no fundo, tinha uma certa coerência e limpidez de pensamento o que era evidenciado por um sorriso carregado de sabedoria. Talvez fosse apenas uma pessoa cheia de excentricidades.
       Se alguém quisesse agradá-la, era muito fácil e com pouca coisa — um prato de comida para matar-lhe a fome, uma xícara de café, que depois de tomado, lhe fazia a boca para um bom cigarro de palha, do qual ela tragava a fumaça com os olhos semicerrados, de onde sobrava apenas um pequeno risco de brilho intenso, tamanha a satisfação causada. Não queria mais nada na vida, senão um bom pedaço de queijo curado, que era muito bem guardado, para ser comido em pequeninos pedaços quando sentisse fome, com um único dente que lhe restara e uma fisionomia resplandecente de prazer.
     Às vezes, quando passeava pela cidade, meninos de rua a rodeavam gritando em tom de galhofa — Benta, rebenta! 
       Benta era seu nome.
      Nesses momentos, ela ficava impaciente, andava mais rápido para fugir do desrespeito e resmungando dizia — Vou-me embora pra Caturaí. Aqui eu não sou feliz. Lá sou amiga do Prefeito, tenho meu quarto, minha cama, tomo banho de rio, faço o que quero. Não fico triste. Vou-me embora pra Caturaí.
       Tinha-se a impressão de que ela parafraseava Manuel Bandeira, tamanha era a coincidência na descrição de sua Pasárgada!
       Dela restou apenas a boneca fantasmagórica, bem guardada, numa caixa, na última gaveta de um armário muito antigo e cheio de sombras, pois um dia, quando ela ficou mais triste, triste de não ter jeito e de noite sentiu vontade de se matar, foi-se embora para 
nunca mais voltar. 

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TRAMA DA LUZ  |  2010
Poemas 

 

: :  Um poema em branco

: :  Ocultam-se em mim

: :  Cruza o céu

: :  Uma ponta de rocha

: :  A face rarefeita

: :  Dois lânguidos gatos

: :  Na festa

: :  ... mais

 

 

 

 

 

 

 

QUANDO O TEU GELO SE LIQUEFAZ

e tudo que guardaste se aflora

                              em cores

vejo o sentido das coisas

                          e me refaço

à procura da palavra-chave

que salve o que pressinto

              para esse desenlace.

 

Mas se te ausentas

em ti pensando

há um desvanecimento

nesse caminho de pedra

um revirar de avessos

e de um poço profundo

na penumbra azul

uma sede me sobe.

 

Sob a trama da luz

águas engolem tua face.

​​​UM POEMA EM BRANCO

é apenas um indício

uma chave de vidro

que abre transparências

um risco na água

mera pretensão do nada

mas à espera do encontro

um consolo, uma data. 

 

O poema em branco

de ponta a ponta não existe

é uma palavra sem rosto

uma voz que não fala

um disfarce, um recalque

um cintilar de nada.

É apenas um intento

desmemoriado, na sombra, à espreita 

de um estranho gesto solicitado

de algo em seu lugar e tempo. 

  

O poema em branco

lívido e mudo de espanto 

é de um negrume que mal se advinha.

Um abismo ou um céu, quem sabe.

Um Eu à espera do Outro

para um encontro no caminho.

​​​SE FOSSE CÉU DENTRO DE MIM

esse, nos contornos angulares do tanque

onde a pedra trespassa a água

                                            no mergulho

e se esquiva em círculos 

                                            num gemido

não seria eu a delicada derrota

mas o Sol à margem 

na luz das romãs maduras

que o amor aguarda.

 

Há um rumor de asas. Ele passa.

No centro das coordenadas

                                        apenas  

um silêncio molhado de águas.

É À NOITE – no silêncio –
que a beladona florida
se mostra em perfumes.

Da seda de suas pétalas
acende uma luz invisível
                 que no escuro
quase se extingue
e se embebe em reflexos
         num voo sem asas
para encanto dos besouros
nesses úmidos quintais.

Suspenso entre sombras
algo de mim se oculta.
Amor ou tormento. Parece.

Fora – além da cerca de álamos –
a cigarra costura o escuro
máquina seca que logo se quebra
                                         estala
e no silêncio, despede-se.

Alguma coisa segreda sob folhas.

Enquanto o vento move árvores
presenças invisíveis vagueiam
                    em meio às sombras.
Varais de roupas assustadas
                             camisas vazias
desarmam desenhos                                    
                        bordados de prata
sob a luz coada da cortina.

ALUCINAM-ME – esses ruídos
que se misturam nos aeroportos
vozes, avisos
setas e cifras
motores que assobiam e indicam
o retorno à marcha, a última partida
seguindo rastros ou rotas diversas
onde a dúvida orbita.

Junto à parede
depois de um café
ajeito-me à bagagem
na fila de embarque
pentax a tiracolo
e fones de iPod                                   
                                     ouço jazz.
 
No ar, sob um céu opala –
vista da luz filtrada
através do vidro duplo
o luzidio da folha de papel
à procura de algum lugar no mapa
oscila na inquietação do vento
encantada com as próprias volutas.

O poema voa, deriva-se
em frêmito, enquanto cai
como se tivesse asas
                       vai e vem
se agita sobre o abismo
na vertigem, incerto
leve se arremessa
aos quatro ventos
ao ponto de encontro  
e talvez não volte mais.

Transportado num suspiro
errante, quem sabe
entrasse por uma porta
se não houvesse cadeado
ou por uma janela aberta
arremessado das alturas.
               Ao seu destino.

OCULTAM-SE EM MIM
versos indevassáveis
                sons mais fundos
                                     antigos
que não são meus.
Guardam um passado
                               intemporal  
em que me disperso
                               num  hiato
onde busco uma lembrança rara.
                                                                                                        
Esse enigma é o fio que desenrolo
que no desalinho
                         resvala
corta a palavra nas entranhas
e o silêncio acerta o alvo, em cheio              
                                                 fere                                
e o sangue esfacela
o poema
no mistério da espera.

LONGE
                         ondas
         peixes
seixos
num porto de rochas
ancora um barco
                           e
tênue se evapora.

Pequeno
frágil papel
dobrado em pontas
palavras
           letras                                
                      salobras


sobras.


 

A FACE RAREFEITA do passado
desnuda-se no silêncio. É preciso.
Para ouvir o murmúrio da água
à sombra do tamarindeiro
e de olhos cerrados
o desfecho das encantações
no brilho intenso dos jasmins
           estrelas perfumadas
em ramagens suspensas.                                   

Tingida de peixes e raízes de açafrão
era a água de minha infância
estancada por estacas
                    aparando seixos
no precipício, contra a queda.
                                            
Nos recantos de remansos
libélulas roçavam ondas
e aranhas teciam
teias respingadas de cristal
                               líquido
que o vento deslocava
sobre o azul mesclado
do canteiro das hortênsias.

Deitada em pedras de sal umedecidas                            
a qualquer risco, inabalável
seguia seu percurso – a menina.

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