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Textos críticos

ARTES PLÁSTICAS  I

 

 

 

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Alcione Guimarães – por PX Silveira*



Goiânia, Goiás, tem uma artista abordando o tema rural como ele realmente é: sem folclorismos ou romantismos descabidos, sem visões preconceituosas e, o que é muito importante em se tratando de uma artista pictórica, sem excessos de plasticidade. É Alcione Guimarães.
                     O conteúdo de suas telas são frutos não da pesquisa, mas da vivência absoluta que, desde me­nina, lhe acompanha de alma e corpo pelas trans­formações que sofre o meio rural e os homens que nele vivem e dele dependem.
                     Entre estas transformações, temos as cíclicas, as sazonais, que são as naturais propriamente di­tas. Temos as transformações culturais, que são as de costumes, efemérides e novos hábitos. Por fim, as transformações ligadas aos fatores do progres­so, tais como novas técnicas, a aproximação das cidades, as infraestruturas, os químicos e os poluentes.
                     São todas estas as fontes que inspiram a imagética de Alcione.
                     Vale dizer que essas fontes nunca são tratadas de uma maneira superficial, como se somente bas­tasse para a artista retratar o que se lhe apresenta. Não. Ao mergulhar em seu repertório de experi­ências, Alcione o faz confrontando as imagens encontradas com as informações do momento, o que interfere no seu processo criativo e confere uma riqueza particular aos motivos retratados.
                     Em suas obras, é o mundo rural que surge em primeiro plano, mas com uma referência implicita que, no fundo no fundo, é o que mais mexe com a alma cabocla : a onipresença, um mundo novo, inevitável, representado pela civilização moderna.
                     Dessa maneira, a dualidade urbis – rural que o artista apresenta, reflete dois mundos que se interagem, interfluenciam e interdependem, em­bora seus ideários aparentes sejam contrastantes : a cidade quer crescer, ainda que desordenadamente, pelo progresso e pela grana. E o campo, antes sítioda harmonia biológica, hoje tem que se virar para produzir mais em menos espaço e acompa­nhar o grande relógio do tempo moderno.
                     Neste contexto, a pintura de Alcione libera, por um momento, a tensão entre estes dois mundos, ambos de importância vital para nós.
                     E haveria dois modos de ver este mesmo fato : o modo que “ os da cidade” veêm o meio rural e o modo entre encurralado e sorrateirio, que “ os de lá” nos veêm.
                     Mas para Alcione só existe um : o modo que ela pinta.
                     Entre suas preocupações, não figuram as rígi­das leis dos acadêmicos ou a liberdade dos traços rápidos de algum ismo contemporâneo. Ela pinta para si. Não se preocupa também em captar a luz ou a cor específica local, mas sim o sentimento. O que vê no fundo das pessoas.
                     O sentimento é peça fundamental na pintura de Alcione Guimarães.Pois é através do sentimen­to que ela realiza o elo com a realidade rural que circunda, indo direto ao que esta realidade tem de mais oculto e incorruptível : suas relações espontâ­neas pessoas – pessoas e homem – ambiente.
                     Sobre personagens e ambientes : umbilicalmente ligados à natureza e ao que dela provém, os personagens de Alcione transpiram sensualidade e um certo mistério por todos os poros. Quanto ao ambiente de suas telas, sabe­mos que dependemos dos campos não só para nossa sobrevivência direta: ar – espaço – alimento, como também para nossa economia : colheita– compra – venda – matérias primas. O que também sabemos e fazemos de conta esquecer é que de­pendemos da natureza, do rural, para ter o senti­do real do belo, pois que são suas paisaagens, for­mas, perspectivas e cores que nos dão todos os parâmteros para o sentido estético.
                     E o que tem beleza, tem sentimento. O que tem sentimento tem sentido. Toca,
                     Daqui, ao menos nos consolamos em saber que não se trata de um mundo utópico, este retra­tado por Alcione, em bora um mundo tão próxi­mo quanto impossível de nós, simples citadinos voltar a ele.
                     Daí o interesse e o espaço que Alcione vem conquistando tão rapidamente com sua obra.


                                                                                                                                                                        * PX Silveira é poeta, escritor e jornalista.

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Dois mitos em alta recriação – por Darcy França Denófrio

Alls one/alcione goyaz galiléia dos gentios – por Guilherme Vaz
Alcione Guimarães – por PX Silveira
Alcione e sua pintura – por Bernardo Élis

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

 

Dois mitos em alta recriação – por Darcy França Denófrio*

 

 

Alcione Guimarães é uma artista plástica surpreendente. Começou a sua carreira perseguindo a realidade mais de perto e agradou. De repente, num rápido amadurecimento artístico e, quem sabe, psicológico, começou a produzir, na área do simbólico, uma arte que não só agrada aos olhos, mas, ao mesmo tempo, carrega uma ideologia. Cremos que isto se deu a partir de suas figuras femininas, de que já nos ocupamos. Nem mesmo uma simples "Ciranda" de mulheres quer dizer apenas isto.

                   Talvez, na linha do figurativo, a tela mais notável de Alcione seja aquela denominada "Minotauro". A primeira olhada já nos revela a fusão de dois mitos: um pagão, outro cristão. E dois planos: o primeiro, em que uma figura feminina se avulta; o segundo, em que um "Minotauro" oferece uma maçã a uma Eva moderna, invertendo visivelmente o mito cristão. Vêem-se dois espaços: um interior, na direção do qual se abre uma janela; outro, embora oposto a este, que poderia ser exterior, sugere um outro espaço também interior: um labirinto, pela sugestão do Minotauro. Fruto de uma execrável concepção, é aí que o rei de Creta, Minos II, o condenara a viver, "para subtrair sua vergonha aos olhares públicos". O adultério da rainha Pasifae, sua mulher, chega às raias da animalidade. Ela se apaixonara pelo touro branco sagrado, presente do deus Netuno a seu marido, como sinal de que aquela divindade aprovava a ascensão dele ao trono. Este animal, entretanto, deveria, depois da coroação, ter sido sacrificado ao mesmo deus, fato que, por sua beleza, não aconteceu. Minos ofereceu outro no lugar daquele. Isto provoca a ira e a vingança de Netuno que inspira aquela estranha paixão a Pasifae. Depois se verá a outra parte deste mito.

                    Em primeiro plano, ocupando aproximadamente 93,3% da altura e 63,4% da largura da tela, vê-se uma figura feminina despojada, quem sabe uma mulher comum, placidamente assentada num banco, olhando de modo significativo na direção do horizonte. Ao seu lado, uma fruteira contém dez maçãs (exatamente um decálogo), havendo no espaço contíguo mais duas disponíveis, já sobre o banco. Em segundo plano, atrás da janela, e atrás da parte superior dessa mulher de costas para tal espaço, a origem das maçãs: um braço masculino. Sem dúvida pertence ao animal, e desenhado ao longo da barbela do touro, expele – por meio da mão que contorna quase todo o seu diâmetro – a maçã em oferenda. Este espaço, embora se abra para aquele espaço interior em que se encontra a mulher, é, possivelmente, a saída de um labirinto: é lá que se encontra o Minotauro, este monstro meio homem, meio touro, e os jovens a ele oferecidos em sacrifício (?). São seis dentro do labirinto e uma mulher fora dele, o que nos dá o total de sete. Sabe-se que o monstro, corpo de homem, cabeça de touro, se alimentava de carne humana. E a cidade de Atenas pagava este pesado tributo anualmente: sete virgens e sete mancebos, que lhe eram dados em (re)pasto. Ali estão figurados alguns remanescentes de ambos os sexos. Entretanto uma coisa é clara: certa mulher de características fortes e bem definidas, encontra-se fora dele.

                 Um fruidor da arte poderá se concentrar no primeiro plano e admitir se o segundo existe em função do primeiro. Afinal a figura feminina ocupa aproximadamente 37% da área total da tela. Ela se impõe pela dimensão e por duas características principais: serenidade e altivez. É urna figura forte e ao mesmo tempo suave. Apesar dos olhos desmesurados e firmes na linha do horizonte, as espáduas largas e esguias (ombros quase másculos), os braços, que se delineiam seguros, terminam em mãos suaves. A figura traduz certo recato, mas também alguma sensualidade, tendo o vestido recolhido à altura dos joelhos.

                    À direita, da perspectiva da figura e não do olho do apreciador, a mão direita cai suavemente sobre um gato, aninhado ao colo, bem no centro da figura feminina, entre o seu ventre e o diafragma e o começo de seus membros inferiores. Coincidentemente, o gato é associado à Lua, no Egito„ sendo que este satélite sempre foi associado ao feminino. Além disto, o gato nessa cultura, é consagrado a Ísis, deusa das palavras mágicas, que detém as chaves de um saber, e à deusa Bast, protetora do casamento. Mitologia a parte, ogato é também conhecido por essas duas qualidades: muito dócil quando bem tratado e hostil quando atacado. Na tela de Alcione, ele ocupa um centro, talvez possamos dizer que represente um meridiano que divide aquele corpo humano em duas partes, que devem ser conciliadas, com sabedoria.

                     O segundo plano (um ponto de fuga?), apresenta um touro branco, nelore como os da fase mimética da autora. Este, porém, escapa de um contexto regional e cai naquele património comum da humanidade: a área do mito. Este óleo sobre tela, de 180 cm x 145 cm, é denominado "Minotauro". Ora, não se escolhe sem razão um título. A história deste monstro, misto de homem e touro, como já se disse, está sempre associada, na mitologia grega, à figura de Teseu, que se ofereceu para enfrentá-lo, integrando o grupo de jovens a serem sacrificados ao touro; e ao labirinto, palácio-prisão, que lhe foi construído por Dédalo, a pedido do rei, para aprisioná-lo. E a figura de Teseu sempre se liga à de Ariadne, a bela filha do rei, que por ele se apaixona, à primeira vista, e que, por amor, lhe providencia o fio que o conduz ao touro, que Teseu mata, fio por meio do qual ele sai a salvo do labirinto, fugindo com Ariadne, para depois abandoná-la numa ilha. Este pormenor não costuma ser realçado.

                   O Minotauro cumpre longa trajetória dentro da literatura mundial. De abominável criatura, na antiguidade greco-latina, passa pela Idade Média, depois pelo Renascimento e Classicismo, enfim, atingindo os séculos XIX e XX sem deixar de lado sua figura de monstro, expressão do vício e da bestialidade, símbolo de uma grande vergonha perpetrada por uma mulher.

                    Somente a partir da década de trinta do século XX, o Minotauro deixa de ser uma figura repulsiva e descobre-se a sua beleza. Segundo André Peyronie é "a partir de 1933 e da publicação da revista Minotaure" por A. Skira, [que] o monstro de Creta torna-se uma espécie de símbolo da modernidade ligado à pesquisa surrealista da beleza convulsiva". Peyronie afirma que inúmeras representações do monstro são realizadas à época para as capas da revista citada, por nomes da importância de Picasso, Dali Magritte, Rivera. Picasso realiza então a sua famosa série Minotauromaquia – a composição de mais de 150 gravuras que formam a "Suit Vollard", à qual acrescentará depois diversos quadros, como o famoso "Minotauro e a égua diante a gruta".

                     Para alguns, a imagem do Minotauro já se transformou na imagem que Teseu descobre de si mesmo ao descer ao labirinto. Enfim, ele passa a significar a parte de nós mesmos, que desconhecemos. De fato, para Nietzsche, o Minotauro e o labirinto convertem-se em metáforas do conhecimento. Também para duas escritoras de nosso tempo, a figura do Minotauro passa a ser o símbolo da conquista de nossa própria consciência. Isto é o que se pode depreender da obra Sedução do Minotauro, de Anaïs Nin (1961), e também daquela outra Quem não tem o seu Minotauro, de M. Yourcenar (1963). De fato, todos somos de certa forma Teseus em luta com Minotauros. Apenas o labirinto se encontra dentro de nós mesmos.

                   Historicamente, no entanto, uma característica foi sempre lembrada: o Minotauro come carne humana o que remete ao "pecado da carne". E André Peyronie nos lembra que, "sobre a capa mitológica, esconde-se um sentimento mais geral de uma espécie de culpa animal ligada à sexualidade, especialmente à sexualidade feminina. De fato, metade carne, metade espírito, a mulher, condicionada por sua educação, sempre teve muito mais dificuldade em conciliar estas duas partes. Sua consciência sempre foi palco de pressões incríveis.

                    Uma particularidade nos fisga a atenção na tela de Alcione: a fusão daqueles dois mitos – um pagão e o outro judaico-cristão. A lenda do Minotauro e aquela da maçã e da serpente. Qual o propósito (consciente ou não) desta simbologia em consórcio? Que estratos de saber superpostos, como camadas geológicas, acordam na tela de uma artista ao mesmo tempo tão singela e tão requintada? Que metáfora casada vem do inconsciente noturno ou de uma consciência já desperta para a tela de uma artista que transita, com igual naturalidade, da referência imediata – da pura mimese – para o universo dos símbolos? Aqui não se tem uma artista que pinta quase hiper-realisticamente a série dos nelores ou daquelas já transfiguradas belas madonas. Tem-se uma artista que quer comunicar intensamente alguma coisa de modo figurativo.

                    Vê-se de modo claro que a figura feminina encontra-se fora do labirinto (escapou dele?) e se sente e se senta confortavelmente de costas para ele. Esta mulher, dotada de características viris (uma certa altivez e firmeza que têm sido próprias dos homens), e também femininas (certa suavidade expressa na mão direita sobre o gato, e mesmo a sensualidade – exposição do colo e das pernas próprias do gênero), parece haver integrado satisfatoriamente as suas contradições e encontrado o ponto de equilíbrio desejável. Parece estar em paz com a sua sexualidade –arena de conflitos desde os tempos pré-cristãos. Parece conhecer todas as regras do jogo (o decálogo) e cria algumas para sii própria, como parecem sugerir as duas maçãs a seu lado. Acomoda uma sabedoria aprendida no curso da história; olha para o horizonte e não para baixo. Como aquele animal ao colo, sabe ser dócil, mas tem tudo para ser igualmente agressivo, em situações que estas qualidades são solicitadas. É enfim, uma nova mulher.

                O Minotauro, por sua vez ainda se encontra no labirinto. O touro, símbolo de força e poder (explorado por Picasso na célebre "Guernica"), simboliza o homem que não incorporou sua anima e inverte o mito cristão. É ele quem oferece àquela Eva do quadro a maçã e não o contrário, como no padrão bíblico. Não podemos dizer que ele se sente confortável na atmosfera tenebrosa do labirinto, ainda devorador de carne, com os jovens remanescentes à sua disposição. No mito, o tributo era de sete rapazes e sete donzelas. Enfim, este homem que representa uma parcela dos homens ainda não é o companheiro ideal de espécie, com a sua animalidade exacerbada. A única coisa que ele tem a oferecer é a sua sexualidade, simbolizada na maçã que ele ostensivamente oferece. Ela vem despida de atributos que a mulher não costuma dispensar – a linguagem do sentimento.

                   Como Alcione recria o mito, este touro não é o do mito grego_ corpo de homem cabeça de touro. Ele é um pouco mais zoomorfizado: a barbela ondula-se ao longo de um braço ligeiramente ondulado. Vê-se também um leve cupim e, numa transição, que é um misto de espádua e pescoço, vêem-se as rugas da pele do animal que se convertem nas rugas dos tecidos de uma camisa. À mostra, o lado humano que se vê, apenas o antebraço apoiado à janela, possível saída do labirinto, com a mão e a maçã em oferenda. Deve ser muito pouco, porque a mulher não se volta: apenas em atitude serena perscruta o horizonte. Quer mais do que simplesmente isto, que provavelmente não inclui a linguagem do sentimento. Talvez por isso mesmo recebe as maçãs, avaliando-as e, sem trincá-las, as dispõe a seu lado.

                   Pode-se ler também que, no labirinto, se encontram homens e mulheres (a grande parcela) que não encontraram o fio de Ariadne do auto-conhecimento e lá permanecerão por mais tempo. Todavia, a porta do labirinto existe e é sempre a promessa de uma possível saída _ para homens e mulheres que poderão se encontrar em plenitude. Basta a coragem de se defrontarem com seus próprios monstros, criados para os seus conflitos, e abatê-los: para o benefício de ambos.

                     Essa mulher, em atitude serena, bem pode simbolizar a moderna Ariadne que será, ela própria, também por amor, o fio condutor da saída do labirinto onde remanescem os exemplares do modelo patriarcal. Não mais o fio condutor de Teseus, que a abandonam depois de se servir de seus préstimos. Mas o fio condutor do Minotauro – o Moloch da luxúria – esse modelo que o cristianismo judaico-romano-cristão erigiu para a infelicidade dos companheiros de espécie. Uma mulher, por amor, é capaz de encontrar a saída de seu próprio labirinto e de estender a mão (ou quem sabe o fio da redenção) a um Minotauro que já deseja se defrontar, consigo mesmo, e sair do labirinto em direção à luz: esta que dissipa todas trevas acumuladas pelos milênios, em nosso palácio-prisão. Cremos, que Alcione, na sua delicadeza de alma, possa estar prefigurando este momento.

 

* Darcy França Denófrio é escritora e professora de Teoria Literária.

 

 

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Alls One/Alcione Goyaz Galiléia dos Gentios – por Guilherme Vaz*



Houve alguém parece que um cientista da área biomédica que escreveu um livro chama­do “O Mal Estar na Civilização” (me parece que FREUD). Em GOYAZ está para se escrever o “Bem Estar na Civilização”, caso não se dê uma perigosa soma de códigos culturais sobre o pro­to código português. O anel de produção do que se convencionou vulgarmente de cultura tem no estado de Goyaz a oportunidade de pelo menos começar do zero. Todos nós sabemos que cultura começa com libertação e termina com repressão. Ninguém conseguiu romper este anel até hoje. A doce acumulação de códigos culturais não funciona positivamente como alguns que­rem – sobretudo quem não é capaz de inventar: mas como elemento amenizador da linguagem. Foi por isto que Jesus nasceu na Galiléia. Civilização portanto é sinônimo de repressão. Sinô­nimo de falta de inspiração – vento sagrado sem o qual não podemos passar. Todos nós sabemos que o pior tipo de homem é o “seguidor”, aquele que reverencia a letra e não o espírito. Produ­tores dos maneirismos do fazer, das mãos únicas, do “caminho certo”. São eles que transformam a vida num jogo de frases e a complexidade do gesto numa receita de bolo. Transformam a vida numa fórmula físico química no papel. Se algo não está no código não é aprovado nem pode existir – mas a complexidade do movimento da criação sempre vai além do código e não pode ser contido – por isto criação não é civilização. Civilização é acumulação de códigos e criação é a ausência deles. A expressão direta nasce da ausência do código e é ela quem determina a vita­lidade da linguagem. Este é o pacto com o fundamental. Neste ponto nós vemos a diferença en­tre a pintura pessoa e a pintura escola. O desconhecido na porta da luz. As grandes regiões pri­vilegiadas do mundo são as em que tudo está por fazer. A Grécia sempre resistiu à verdade – os bárbaros não. Quando ninguém sabe o que é estamos perto de descobrir. O universo não supor­ta o conhecimento. Goyaz tem futuro. A profunda e crônica ausência de civilização em Goyaz — coisa que durou séculos — é exatamente o patamar de garantia do seu futuro. Donde se conclui que os culturalistas goianos nada entendem da sua terra. Precisamos parar para pensar. Coisa que já estamos fazendo, naturalmente. Por outro lado, pior que a civilização somente a sub-civiliza­ção, o sub-código, a sub-escola, o sub-conservatório, o sub-super-ego, a degradação provinciana do pensamento – nela ninguém viveu o que fala, ninguém nunca sentiu o que diz, e vivem todos numa corte imaginária ao pensamento que vem de fora, num teatro mágico em Viena, onde to­dos comem mandioca e se abaulam com licor de piqui. Esta realidade convive com todas as de­mais. Implacavelmente. Por outro lado esta fraqueza do super-ego cultural, exatamente por não ter capacidade sólida de rejeição e de discriminação generalizada, provoca e permite o fluxo do direto. Nisto se salva Goyaz. Portanto permanece funcionando o fundamental axioma históri­co, o fundamento da verdade histórica – o melhor nasce no pior. (Guaratiba). Esta é a história da Galiléia dos Gentios. A vitalidade da imaginação nos Goyazes não se pode explicar senão pe­la completa ausência de civilização à frente, atrás, e em volta dela. No caso de Alcione nós nos deparamos definitivamente com a pintura pessoa praticada em Goyaz. Sem compromissos com escolas. A mulher sempre aglutinou todas as figurações relacionadas com instintos, organicidade, bases intuitivas e conseqüências pára-lógicas – a figura da mulher. Figura a terra – o proto co­nhecimento. Figura a revolta fundamental do ser contra todos os ataques desfiguradores-defor­madores-destruidores do seu caminho implácável na direção da sua deflagração completa. A mu­lher na pintura de Alcione não é a mulher – ela é o desejo do ser pelo perfume. O ser iridisado pela luz. Contração do real na sua explosão. Vive na eminência – na virtualidade – na potência do entreaberto – nos vultos contra a luz, como um signo poderoso da verdade. Como uma vigi­lante silenciosa. Definitiva. Algo que também simboliza Goyaz na sua rebeldia e na sua descon­fiança contra a civilização. Contra o raquitismo civilizatório. As profundas raízes do universo não suportam as muralhas da civilização. O impacto – fundamental em qualquer trabalho de arte – nada tem a ver, senão pelo rompimento com a civilização. O universo somente suporta a versão que ele dá de si mesmo. A saia do universo. Os frutos da terra. Abóboras-montanhas de abóboras sob a glória do sol. A glória da luz. Como se a pintura desafiasse uma versão espontâ­nea do universo. O meio rural como símbolo da resistência. Os terras. Toda pintura dominada pelos terras. Toda pintura dominada pelo sentimento de que o universo é maior do que a palavra do homem. O espectador afoga-se no universo. Na verdade do Universo. Definitivamente. A be­leza do ser não do dever ser. A beleza do Mundo de Deus. Alls One. Tudo é um. Alcione.


                                                                                                                                                           * Guilherme Vaz é maestro, compositor e escritor.

 

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Alcione e sua pintura – por Bernardo Élis*



Tranquila, simples, autêntica – assim nos aparece a pessoa Alcione, pintora de Goiás e do mundo inteiro. Nas tais características não serão ape­nas aparência? O mesmo se poderá dizer da pintura desta artista.
                    Era uma tarde de muita luz, tarde desses outonos goianos que se confundem com a primavera, quando fui ver a coleção de quadros de Alcione, na sua fa­zenda perto de Goiânia. A primeira impressão que me assaltou foi a de nitidez – essa clara nitidez da paisagem goiana, aberta. Para o alto, de horizontes distantes, formando uma pequena fímbria a altura do olhar, céu alto, as coisas e os seres recortados em linhas e gumes inconfundíveis, a luz brilhante banhando tudo e até ofuscando a visão em asseado e bem comportado repouso.
                    Mas o que vemos e percebemos à primeira impressão não serão aparências apenas? Não será sorriso a máscara da amargura? E a tranquilidade não seria o disfarce de um eterno tumulto interior? No caso da arte, até onde a pintura, a música, a literatura não são o lado que a vida negou as artista, ou que ele por defesa ou por vingança escamoteia, mascara, esconde, transforma e trans­cende em recriação?
                    É devagar que se vive no mundo rural; devagar e com negaças de quem indo não vai e de quem não quer querendo. Também é devagar e coa astúcia que se percebe que na arte de Alcione nem tudo são luzes, nem tudo são linhas ní­tidas de gume cortante. Nas faces sempre abaixadas das figuras masculinas e femininas, ou veladas pele chapéu desabado, há frinchas e gatimônias denuncia­doras de olhar vigilante de homem de canavial; por trás dos bois, entre as tábuas do curral, há olhos de espreita na defesa da propriedade privada ou numa ameaça a ela.
                    Naquela franqueza de meio-dia, há a mulher debruçada sobre a mesa, diante de um escasso bocado de biscoitos recem-assados. Será que a mulher cho­ra a pequenez de resultado de meses de trabalho ou ela procura adormecer enquanto espera, pois na roça sertaneja a mulher está sempre esperando: ou a gestação de seu ventre ou a gestação de sementes na terra e em outros ventres.
                    À luz serena e fria do grande abajur, no silêncio da ausência, que­dam-se as frutas numa como conivência de tentação ao apetite voraz da infância, mas talvez inaccessível a quem as quiser apanhar. Ah, eterna fome de menino! Ah, tentação das frutas e doces que somente as visitas nobres podiam saborear! Como é viva e melancólica sua lembrança!
                    É no pormenor de um gesto escondido ao segurar a sombrinha, e na desajeitado de uma postura para retrato que tudo o mundo rural de Alcione se manifesta, conhecedora que é da roça e do roceiro, dos povoados e suas festas, dos homens e suas dissimulações por séculos e séculos de ignoradas opressões e na imitação ao estrangeiro.
                    A trágica presença de fumarentas lamparinas de querosene fabricando mais sombras do que luz e reinventando cabeças e assombramentos mais vivos do que os vivos. Na simples cabeça de boi se embute por completo mundo de léguas, das cercas de arame delimitadoras de almas e gafanhotos, das estradas desertas onde o sol põe reflexos, das doenças e religiosidades, catiras, amo­res e tocaias envoltos em poeira, ladainhas, cantos de pássaros e ambições descontroladas. Eu te conheço desde muitos séculos; nós te conhecemos desde mui­tos séculos.
                    Nas mãos dessa artista, até um trivial ramo de ervas depositado no vaso assume proporções de espera pela visita de circunstância que talvez não nos venha visitar naquela tarde. Na limpa limpidez da tela de caro tecida es­ticado, tratada, lixada, polido, cresce o circunstancial e o efêmero nas cores de todas as regras de viver e conviver dessa humanidade de bichos que convivem com homens e de homens que convivem com bichos, plantações, grãos, instrumen­tos, ferramentas e máquinas, nesse universo tão goiano de Alcione, banhado de uma doce e doméstica solidão.


                                                                                                                             * Bernardo Elis é escritor e membro da Academia Brasileira de Letras.

 

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