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Textos críticos

OBRAS COMPLETAS

 

 

 

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Zuarte

 

A outra asa – por Darcy França Denófrio

Sobre Zuarte de Alcione Guimarães – por Aglaia Souza
Alcione Guimarães, escultora de telas e versos – por Elizabeth Caldeira Brito

Handbook of Latin American Studies, vol. 60: Humanities, Texas University Pre, 2005 – por  Laurence Boudon

A outra asa – por Darcy França Denófrio*

Eis Alcione Guimarães migrando para outra modalidade de lírico. O lírico sempre esteve presente em suas telas. Mas agora ele se encontra potencializado em seus poemas, criados com o mesmo desvelo artístico dispensado àquelas.

                     Significativo é o fato de Alcione iniciar sua obra poética tomando como epígrafe um fragmento do diário de Paul Klee, artista plástico suíço, que resume, numa bela imagem em que subjaz o mito de ícaro, os fundamentos de sua filosofia de vida e do seu modo de produção artística: dele e dela. Ambos se dão conta (um por meio do outro – uma epígrafe sempre significa, mesmo quando não signifique nada), de que o artista é um ser que se "esforça infatigavelmente por voar e, apesar de partir braços e pernas, não desiste de continuar a voar". Saber-se dotado de uma só asa, ao contrário dos seres divinos, enfim, saber-se humano e não sobre-humano, dá a esse ser uma têmpera que o distingue dos demais. Dá-lhe a tenacidade roubada de certos metais. Nunca se parte na queda: sua marca distintiva é a obstinação em superar os seus próprios limites.

                     Dividido em duas seções distintas, uma de poemas outra de quadros-poemas, este livro teve a sua primeira parte concebida antes da segunda, preservando a sua independência artístico-literária. Deliberadamente, a segunda estabelece um diálogo com a primeira, não a priori, mas a posteriori. Ou seja, a artista plástica inspirou-se nos poemas (todos numerados em caracteres romanos, sem título), para criar os seus "quadros-poemas"; entretanto fez questão de os manter à distância, embora os números, de cada poema e quadro, se relacionem, se intercomuniquem, como vasos comunicantes. As telas se subordinam aos poemas e não o contrário.

                     O primeiro poema é metalingüístico. A voz lírica afirma que "O mistério da trama/ urde o poema". O quadro I, que evoca um ciclo de imagens auto-semelhantes num processo interativo próprio do fractal, sugere a idéia da fragmentação e da sintaxe no ato da fala . Vêem-se quatro seções de tecido, ligadas uma às outras, pela costura, sugerindo a tecedura/ mágica dos versos. Esta requer cuidado. A voz lírica sabe disto e já aprendeu que a forma poética de se expor é às avessas/ meadas e meandros, fio por fio. Portanto dirá, no poema XXXVIII, do qual extrai o nome de seu livro, "teço meu zuarte".

                     Inteligente o achado de Alcione. Zuarte, tecido rústico e perdurável, lembra a sua origem rural (presente na antiga série de nelores e cenários rurais do início de sua carreira nas artes plásticas), agora indexada no título de sua primeira obra poética. Dois modos de expressão artística inaugurados na lembrança de fundas raízes da mitologia pessoal da criadora.

                     Questão pendente para o existencial, como é a questão do duplo, aparece no poema II: Um poço e suas paredes/ vestidas de pedras e avencas/ ainda reflete no espelho/ um rosto perdido no tempo. Ela reaparece no poema XVIII, neste verso: Queria recuperar o meu rosto. Todavia, é no fecho do poema XXVIII que o duro exercício de auto-contemplação simbólica evidencia-se, com aquele "camafeu de olhar inquiridor" a espiar de dentro da caixa de laca chinesa.

                   No poema XII, compreende-se que o ser, cindido em dois, experimentou um dia uma antiga unidade, como a que se vê na infância, num ambiente sagrado, quando passos/ leves novelos de seda/ conspiravam com anjos. No entanto, a chave desse tempo, secreta como aquela do sacrário, cujas franjas de ouro a menina desfiava, se perdeu. Daí a pungente indagação: Onde andará a chave/ daquele resplendor? A nostalgia do paraíso perdido permanece no poema seguinte, o XIII: O tempo cardou/ com cuidado/ meu velo macio da infância. Nem todos podem contemplar com igual ternura o seu rastro na aurora.

                   Questões de alta densidade metafísica, afinadas com os nossos tempos, são sugeridas em poemas como o XXVI: É denso o silêncio/ que ensurdece os deuses. Ou, então, neste que flagra uma outra espécie de cisão e que radiografa uma era plena de tecnologia e misticismo: acendo uma vela a Deus/ e outra ao diabo. Se se preferir a pura fragrância do lírico, ela se encontra em outros poemas, tais como o XI e XXIX.

Notável é que, mais de uma vez em seus poemas, Alcione se identifica com a mulher que soube reverter o objeto-símbolo de sujeição doméstica ou de suplício doméstico (a vassoura), num objeto-símbolo de poder mágico, capaz de libertação. A mulher-bruxa é insinuada no fecho do poema XIV, no dístico: A réstia de alho/ é pra exorcizar o Demônio. Já no poema XVI, aquela que persegue "sendas e sonhos", e é um "patético espantalho", consegue a proeza de voar, como a noiva camponesa/ de Marc Chagai". E como esse vôo se realiza por meio da arte, a voz lírica (ou a bruxa contemporânea) se dá conta de sua extraordinária decolagem, de seus poderes mágicos, de sua metamorfose: E agora, que estou/ muito mais além,/ tornei-me bruxa./ Desvelei meu avesso,/ encantei-me.

                   No poema XXII, reconhecendo que muitas outras mulheres a precederam – Muitas bruxas ancestrais andaram por aqui – a voz lírica reconhece a origem de sua primeira asa: Na parede, um prego/ com uma paleta de tintas. (...) E feixes de vassouras/ atrás das portas. Diz mais, dando-se conta de seu apelo interior para as artes plásticas: Me agarrei somente a uma (...) E saí por aí. Acontece que Alcione acaba de arrebatar mais uma vassoura, daquela reserva deixada por bruxas ancestrais que se recusaram a varrer somente o chão cotidiano. Esta pode ser a outra asa que lhe faltava para equilibrar o seu vôo de ser cindido, capaz de devolver-lhe uma relativa unidade. Esperamos que esta plane em igualdade de condição com a outra, cuja envergadura merece reverência _ aqui ou em qualquer parte deste mundo globalizado.

 

 

* Darcy França Denófrio é escritora e professora de Teoria Literária.

 

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Handbook of Latin American Studies, vol. 60: Humanities, Texas University Pre, 2005 – por  Laurence Boudon*

Literature: Brazil: Poetry / 645

 

Among women poets, there are two representative voice: Alcione Guimarães' Zuarte recalls Brazil's rural toots emulating the work of one of the greatest living poets in Brazil today, Adélia Prado, and provides a magical dimension to the intimate details of women's existence.

 

Literature: Brazil: Poetry / 647

 

4.190 – Guimarães, Alcione. Zuarte. Goiânia, Brazil: Ed. Kelps, 2000. 1v (unpaged): ill. (chieflycol.).

 

Zuarte is a strong rustic textile that the author uses as a metaphor for her rural roots. The broom, a symbol of domesticity and subjugation, becomes a magic and power-full tool by witch to metamorphose into a magic angel/with and flying peasant woman as in the painting of Klee and Chagall: "muitas bruxas ancestrais andaram por aqui"  Also evokes a bucolic tone as in "da flauta a música do caule de mamão".

 

 

 

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Sobre Zuarte, de Alcione Guimarães – por Aglaia Souza*

 

 

Neste seu belíssimo Zuarte (Editora Kelps, Goiânia, 2000). Alcione, misto de poetisa e bruxa, lembra-nos Cecilia Meireles (murmúrios, poços, avencas, silên­cio...) e traz-nos música.

                     A artista, já reconhecida como pintora, desde Goiânia para o mundo, com exposições em Brasília, Rio, São Paulo, Paris, entre outros locais, agora migra para outra arte, a Poesia, com maiúscula, pois consegue nos comover com sua voz, ora doce, suave, ora saudosa de uma infância bem vivida. As cores de suas telas, que figuram na segunda parte do livro e na verdade foram feitas sobre e após os poemas numerados, sem titulo, parece que vestem-na ("O azul me veste...", do poema XXXVIII) neste encontro com as palavras.

​                     Alcione Guimarães, neste seu primeiro livro de poesia, faz a união perfeita entre as duas artes que domina, e parece tê-lo intitulado Zuarte, não em referência ao tecido rústico, mas justamente à fusão de a/Zu/l com Arte. E conseguiu trazer-nos um belo livro, não só graficamente, mas poético, como poucos nesta virada de século. Publicado no ano passado, ainda cheira a novidade, novos tempos, nova era. Arriscaria dizer que uma nova poetisa surge, para ficar. E também que os poemas se bastam, por si só.

 

* Aglaia Souza é poeta e escritora.

 

 

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Alcione Guimarães, escultora de telas e versos – por Elizabeth Caldeira Brito*

 

 

Dentre as várias formas de comunicação artística, Alcione Gui­marães identificou-se inicial­mente com as artes plásticas. Após con­cluir o curso de Direito, na Universidade Católica de Goiás, dedicou-se à pintura. Fez curso livre desta técnica e de dese­nho na Escola de Belas Artes da Univer­sidade Federal de Goiás. Aprendeu com os mestres Frei Nazareno Confaloni, DJ Oliveira e o ídolo de muitos, Amaury Menezes. Aprimorou com DJ Oliveira sua visão de arte. Há muito optou pela carreira de pintora. Recebeu várias pre­miações em concursos, salões e bienais. Dentre as exposições individuais, mere­ce destaque a realizada na Fundação Nacional de Arte – Funarte-SP.

                     Mas aqui, a proposta é abordar outro pedaço, outra voz de sua vida ávida por extrapolar os limites do dizível: o seu fazer poético. A poetisa chega inesperadamente, Vem expor os sentimentos que transcendem palavras, recurso limitado que utili­zamos. Chega, como quem vem para ficar: com leveza e fluidez, tal qual um suave vento, no lusco-fusco de uma outonal tar­de goiana. Comunica-se em dupla lingua­gem artística: a poética e os quadros-poe­mas, como denomina suas pinturas no li­vro de estreia – Zuarte. Surpreende-nos com líricos e consistentes poemas, esculpi­dos em sintonia com as telas. Precedendo as pinturas, invadem-nos, dos olhos à alma, em múltiplos estímulos:

 

IV

"Olha uma tênue luz

se abisma através da vidraça

como um anjo etéreo.

Sobre a mesa,

duas laranjas

breves e solenes,

vermelhas e serenas.

E esse silêncio–

denso rememorar

de ácidos e doces

sentimentos secretos."

 

O poeta Rainer Rilke afirma que, para se produzir uma obra de arte, é necessá­rio ensimesmar-se e examinar as profun­didades de onde jorra a vida; na fonte desta é que o escritor encontrará a respos­ta à questão de saber se deve ou não pro­duzir sua literatura. Alcione mergulha e, ao emergir de seu molde, figura plural e singela, arranca e extrai a vida. Traduz urdiduras vividas. Expõe, para a eterni­dade, efêmeros diálogos da existência hu­mana, em variedade de riquezas metafóricas e místicas reflexões:

 

VII

"No enlevo do enredo

ao desvelo da trama

novelo.

Na linha

da vida,

na lida

das mãos,

repasso meus sonhos.

Do fio à urdidura,

caminho meu rumo.

Só Deus sabe."

 

Paul Klee pondera: "não cabe ao artis­ta reproduzir o visível, mas tornar visível o que ainda não é". Ao se expressar, Alci­one Guimarães assusta intimidades e as­sume, com a pintura e a poesia, a respon­sabilidade de tornar visível o que ainda não o é. Gestora do verso e da tela, reper­cute inquietações que a habitam, co­muns ao mundo que a cerca. Surge assim uma nova e melodiosa voz, para o alcan­ce do objetivo original da arte: expressar o espírito humano, neste nosso nem sem­pre bem habitado planeta poético.

 

Namastê.

 

* Elizabeth Caldeira Brito é poeta, jornalista e escritora.

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Fuso de Prata

 

Literatura e pintura – por Valentim Facioli
Sobre Fuso de Prata – por Fernando Py
Visões do infinito – por Brasigóis Felício
Apreciação – por Bariani Ortencio

​Literatura e Pintura – por Valentim Facioli*


O olhar feminino deslocando-se para captar muitos olhares e vozes, muitos seres diversos e diferentes, especialmente o Outro, bem Outro, que quase não é visível.
                     Um olhar bem feminino, ao mesmo tempo astucioso e delicado, aberto para as migalhas do cotidiano e para os sonhos, as fantasias, os mistérios, a infância, as muitas memórias que todos carregamos. As viagens.

                     São onze narrativas neste livro primoroso de Alcione Guimarães, nas quais as personagens são frágeis, a maioria excluída da grande estrada, portadoras de muita humanidade, humildade e enganos, capazes de viver os mistérios e os enigmas do próprio destino, quase como um caminho para o nada, indicando com isso, no dizer de Guimarães Rosa, o nada e a nossa condição.
                     Ou, para lembrar o escrito de Borges, ao final do conto "Fuso de prata", e do livro: há sempre um sonho dentro do sonho, e dentro de outro sonho, que o caminho é interminável e podemos morrer sem despertar realmente.
                     O estilo dominante nesses contos é próprio de um delicado olhar feminino, de uma leveza exemplar, na composição das frases, na escolha vocabular, nas notações psicológicas e sociais. E sobressai, percorrendo os textos, a arte exímia da notável artista plástica – que Alcione também é – na descrição ou sugestão das formas, das cores, das nuances das imagens, dos seres, dos objetos, das paisagens.
                     Alcione Guimarães compõe uma aliança rara e feliz entre literatura e pintura, fazendo de seu livro um repositório de enigmas, mistérios, belezas, na intersecção do visual e do emotivo, tudo convergindo para que nossa vida breve seja especulada nas travessias, no fluir do tempo e nos enigmas dos sentidos.
                     É um livro edificante, no sentido próprio, de instigar nossas perguntas para com elas podermos construir ou reconstruir as possíveis respostas ao fluxo múltiplo e variado da vida. Goiás está de parabéns por contar entre seus muitos artistas com Alcione Guimarães, artista plástica e artista da palavra narrativa e poética.


                                                                                                                                                                 * Valentim Facioli é professor, escritor e editor.


 

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Sobre Fuso de Prata – por Fernando Py*

“Nos contos de Fuso de Prata, de Alcione Guimarães (São Paulo: Nankin Editorial, 2006), o que chama a atenção de imediato é uma certa diluição das fronteiras entre o real e o imaginado. O leitor é atraído pela narrativa na primeira pessoa da protagonista, quase sempre às voltas com situações e fatos estranhos ou que existem apenas em sua imaginação. Seja retratando um tipo, como a andarilha de "Para nunca mais voltar" ou a velha de "As pérolas", ou ainda as irmãs solteironas de "Os duendes", seja narrando episódios mais corriqueiros, a autora envolve o texto numa atmosfera de estranheza, fantasmagoria e sonho, presentes no livro inteiro, sobretudo quando o real se mescla ao fantástico na cabeça da narradora.
                     Descrevendo paisagens e episódios com segurança e estilo – a que não está alheia a sua condição de excelente pintora e retratista – Alcione Guimarães constrói suas histórias com leveza, sem sobregarregar o texto, conseguindo principalmente fazer verossímel o irreal e estranha a própria realidade. Vemos personagens se comportarem de maneira insólita, como o garoto de "O Deus imaginado" ou "Das Dores, de Fogos fátuos", e esse comportamento enfim nos é mostrado de maneira mais natural, como se não tivesse nada de mais, tivesse a banalidade do perfeitamente cotidiano. Alcione Guimarães escreve contos de maneira exemplar e seu livro mostra uma ficcionista de raro valor, cuja obra certamente está entre as melhores da contística brasileira”.


                                                                                                                                                                      * Fernando Py é poeta, escritor e jornalista.

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Visões do Infinito – por Brasigóis Felício*

 

O livro de contos Fuso de prata, de Alcione Guimarães, merece entrar para o livro de ouro da prosa de ficção feita em Goiás. Sem falar que ocuparia lugar de destaque, no conto brasileiro. Eis a impressão que me ocorre, após ler, quase de uma só vez, os onze contos deste livro pequeno em tamanho, e grande em qualidade literária. Nele, Alcione Guimarães, que já se destacara com a publicação de seu livro de poemas Zuarte (obra ilustrada por ela mesma), vem revelar uma sensibilidade e um talento marcantes, na arte de narrar.
                     Domínio da linguagem e confecção de uma atmosfera enigmática e poética, quase como a paisagem dos sonhos, em que, em verdade, consiste o que chamamos de vida desperta. Que é, como se sabe, de um realismo imaginado, não chegando a ser real, visto que, no dizer de Shakespeare, "A vida é feita da mesma matéria de que são feitos os sonhos – e entre um sonho e outro, decorre a nossa curta existência".
                     O clima de mistério e encantamento começa já em Amavios, primeiro conto do volume publicado pela Nankin Editorial. Com habilidade, a autora nos leva ao inesperado desfecho do conto, revelador do quanto pode criar realidades a imaginação do ser humano. O mundo solitário e privado das pessoas simples, do interior, é colocado com intensa carga poética, em narrativas como "Para nunca mais voltar" e Benvinda. Uma solidão cantante e feliz, porque intocada pelo trivial variado das convenções hipócritas, em que se comprazem (e se desfazem) as pessoas ditas "bem-sucedidas".
                     Mas também há espaço para a psicologia profunda do mergulho interior, como em Satori, conto marcado por atmosfera lúgubre e sinistra, de fazendas e estradas interioranas, imersas no negrume da noite. Uma viagem dentro da noite, após impressões e emoções desagradáveis, cria urna atmosfera de medo e perigo, resultante da passagem por uma cidade evocadora dos espíritos, seguindo-se outras, de aspecto onírico, a lembrar a tela Cidade de sonho, de Paul Klee.
                     Por fim, após exorcizar possível bruxaria, entregando um porco assado aos espíritos da noite, a personagem ficou à beira da estrada, a contemplar o mistério essencial da vida, integrada à natureza: "Não queria pensar em mais nada. Deixou seus pensamentos vagarem, sem reprimi-los, até sentir seu espírito flutuar para abrir, no infinito, a porta do céu. Havia perdido o corpo. Desfez-se como uma pequena luz de vaga-lume que se apaga e, naquele instante, retornou-se o seu próprio universo. Pela primeira vez, quem nunca praticara o Zen-budismo, atingira o satori".
                     A visão fantasiosa de uma criança, no conto Ninguém soube, vem acrescentar-se a ambiência fantasmagórica das moças tornadas duendes, pela solidão de seu envelhecer não conscientizado. Clara alusão da autora ao fato de que, muitas vezes, vivemos nos espaços criados por nossos desejos e nossas fantasias – nunca na verdade essencial do que E. Fuso de prata, conto que dá título ao volume, vai na mesmo caminho de contos anteriores; sua ação decorre em fluxo de consciência da personagem, mergulho interior em que entra ao ver, do avião, as luzes de Nova York – em vez de adentrar o mundo vertiginoso da metrópole, viaja pelas horas silenciosas da fazenda onde foi criada, junto aos seus pais e avós.
                     Em sua busca do tempo perdido, resgata lembranças, texturas do ar, cheiros, ranhuras das coisas, solidez de móveis e sons de águas, aves, bichos e pessoas, até ser despertada de seu transe, enfim podendo aterrar de sua viagem ao "imaterial e incorpóreo". Isto porque, segundo Jorge Luiz Borges, ao despertar para a vigília, apenas adentramos um sonho anterior: "Esse sonho está dentro de outro, e assim até o infinito, que é o número dos grãos de areia".


                                                                                                                            * Brasigois Felício é escritor e membro da Academia Goiana de Letras.

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Apreciação – por Bariani Ortencio*
 

Apreciação é uma palavra boa quando a gente aprecia, degusta um de-comer ou uma bebida saudável, condizente. Também quando se lê um livro com prazer ou se ouve uma música que nos agrada. Aí, então, damos nossa opinião, a impressão da leitura e da audição, fazemos uma simples avaliação. No caso, agora, trata-se de um livro, mas longe de julgar, de fazer crítica literária. Apenas apreciação e um mero, mas honesto parecer. Não leio qualquer coisa, e recebo dezenas de livros, pedindo apreciação. Gosto de um livro bem escrito, principalmente de contos, onde o autor, realmente se revela como escritor, que sabe o que conta e sabe como escrever. O escritor é obrigado a conhecer as palavras, que "as palavras são a ferramenta do escritor". (Não sou eu o autor, mas aprovo com toda convicção). Muita gente está escrevendo e publicando, mas nem todos estão conscientes das exigências para que se possa chamar escritor.
                   Acabo de ler um livro assim, dentro das normas, de autoria de mulher, que aqui temos ótimas contistas. A autora é impecável nas narrativas do começo ao fim, com vocabulário rico e grandes achados. Construções de frases enxutas, objetivas, adjetivação que sublima, tornando a obra altamente poética. Não há períodos frouxos nem períodos desligados da temática.
                     Na totalidade, introspecção com personagens autênticas e voos soltos, mas sempre bem recolhidos, condensados em trama e desfechos bem realizados. Personagens constritas, refugiadas em seu interior, toda amargura, toda angústia magistralmente narradas, onde o leitor se compartilha com tais personagens, subindo ao palco onde se desenvolve a trama. Encontramos no livro narrativas de altíssimo valor psicológico, personagens ensimesmadas, com seus segredos lacrados e refugiados nos íntimos, somente a autora consegue buscá-los, trazendo-os à tona, extravasar esses escondidos das almas de seus bem delineados personagens. Durante todo o desenrolar da leitura encontramos rostos irreais que se reconhecem. se mostram, à medida que seus anseios de sonhos mal sonhados, impossíveis de serem reais, tentam subir, e, de pronto, se apresentam.
                  Conta. mostrando a realidade da vida das metrópoles e da roça, pelos seus personagens tão diferentes uns dos outros, mas permanecendo a força telúrica da autora em um ambiente, e a força da modernidade em outro, "na cidade e na roça", parodiando o título do de livro de 1923, do precursor Pedro Gomes. Finalmente, solidões íntimas, mas coletivas no cômputo geral de todos os onze contos.
                     Relato, enfim, o livro Fuso de Prata da contista, poeta e uma das principais artistas plásticas do nosso Pais, dileta mulher do escritor Coelho Vaz, nosso presidente da Academia Goiana de Letras, Alcione Guimarães.

Macktub!


                                                                                                                           * Bariani Ortencio é escritor e membro da Academia Goiana de Letras.

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